quarta-feira, 12 de março de 2008

artigos, publicações, autorias e outros bichos

Uma vez tive uma aula bem interessante, numa disciplina de História Natural de Vertebrados. O professor, muito bom por sinal, reservou um dia pra falar do comportamento de um animal bem comum no meu convívio: pesquisadores. Ele resolveu falar de um aspecto essencial à vida dos pesquisadores, quase tão essencial quanto comer e se reproduzir para o resto dos organismos: publicar.

O que me marcou na aula foi a objetividade. Ele falou essencialmente de publicação de artigos científicos, de o quanto isso é importante para a ciência e o que é de fato ser autor de um artigo.

Pra ele (e pra mim hoje em dia também), autor é aquele que idealiza, faz o desenho experimental, obtém os dados, analisa os dados, interpreta os dados e escreve. É claro que alguns artigos têm co-autores, que são pessoas que participaram ativamente do processo, ajudando essencialmente a idealizar e a interpretar os dados. Se alguém discute o artigo e tem uma idéia genial que ninguém tinha pensado antes e MUDA o rumo da discussão, talvez esse alguém também possa ser incluído como autor. O sujeito que ajuda na coleta, o que empresta o material, o que eventualmente gera algum dado ou o que ajuda em alguma análise recebe um belíssimo agradecimento no final do artigo, o que deveria ser tratado com mais apreço pelos pesquisadores em geral.

O que marcou mais foi isso: a autoria está relacionada ao produto INTELECTUAL do trabalho, não ao conteúdo braçal. Fico cada vez mais estarrecida com a ciranda da ciência que vejo em muitos lugares: "põe o meu nome no teu artigo que depois eu ponho o teu no meu..." Parece coisa de criança! E os laboratórios que visam "fortalecer o grupo"? - leia-se: "vamos colocar o nome de todos em todos os artigos que produzirmos, assim nossos alunos terão curriculos competitivos para prestar os concursos que vêm por aí..."

Alguns fatores ajudam a entender alguns porquês destes comportamentos (nada que os justifique de fato). Hoje, para ser admitido como PROFESSOR numa universidade pública, o sujeito tem antes que provar que é um PESQUISADOR, e tem que ter publicado vários artigos em boas revistas. É interessante isso, desde que não nos esqueçamos que é preciso contratar bons PROFESSORES. Não tenho nada contra quem publica muito e bem, muito pelo contrário, só gostaria que a habilidade de ensinar também fosse levada em conta de maneira mais séria, será que é pedir muito?

A segunda coisa é que a CAPES fechou o cerco contra programas de pós-graduação que publicam pouco. Isso faria mais sentido se fosse observada a qualidade além da quantidade (parece que agora isso está começando a mudar, felizmente). Acho que uma coisa saudável a fazer seria fiscalizar as cirandas, não sei exatamente como fazer isso, mas o bom senso diz que qualquer artigo com mais de 5 ou 6 autores, a menos que seja algo realmente grande, no mínimo tem autor demais... Um amigo meu disse uma vez que certos artigos têm "mais autores que graus de liberdade". Dá até vergonha de uma coisa dessas.

Outro dia escutei um discurso que era mais ou menos um guia de sobrevivência: "me cita que eu te cito, isso fará inflar nosso fator H", a grande coqueluxe do momento... Tem outra: "cite só artigos da Web of Science, que é lá que o fator H é computado, se não está neste banco de dados, não existe"! Sim, estamos numa guerra pela sobrevivência. Publicar e ser citado virou o objetivo. É claro que publicar é importante e ser citado pode significar que seu trabalho tenha alguma relevância pra alguém mais que você e a sua mãe. E a ciência? E a curiosidade? E o tesão de fazer uma boa pergunta e tentar responder? Estas coisas estão cada dia mais raras. Hoje, pra começar um projeto, a primeira pergunta que se faz é se é publicável e não se você tem vontade de saber o que vai tentar responder. Ah, e pra responder o que quer que seja você tem que usar a ferramenta da moda, o que pelo menos em biologia significa gastar rios de dinheiro com equipamentos e reagentes caríssimos pra obter resultados que nem sempre são tão bons (já parou pra pensar nisso?).

Acho que passou da hora de parar pra pensar e refletir sobre o que estamos fazendo. Que tipo de ciência estamos produzindo? Que tipo de alunos estamos formando? Que raios de exemplo estamos dando com estas cirandas??? Será que somos o que gostaríamos de ser quando decidimos por esta carreira? E pra quem está em formação, eu sugiro que comece a pensar desde já no que é ético e no que não é nessa nossa carreira. Às vezes não dá pra brigar pelo que você acredita estar certo, mas observar atentamente o comportamento dos seus colegas, professores e orientadores pode ajudar bastante na sua formação científica. Isso vale pra ter exemplos de como se comportar e principalmente de como não se comportar...

3 comentários:

Michele Gravina disse...

Pois é Karla, você tocou num ponto fundamental: Onde fica a curiosidade? A força motriz de todo bom cientista ganha cada vez mais "pás de cal", correndo o risco de ser enterrada de vez. Infelizmente os alunos de IC estão cada vez mais precocemente entrando também nessa ciranda e com esse "cita que eu te cito" estão perdendo a oportunidade de fazerem perguntas. Logo no começo da formação acadêmica já aprendem a saltar uma das principais etapas do método científico, pra quem gosta de ciência DE VERDADE, como nós, isso é triste de ver. Ainda bem que ainda existem Professoras e Professores como você.

Anônimo disse...

essa é a Karlinha!!! é isso aí!!!pau neles!
hahaha
beijos com saudades
Ju

Marcos Vital disse...

Oi Karla!

É sempre um alívio ouvir pesquisadores que pensam como você; infelizmente isto é raro...

É realmente assutador como toda esta pressão para publicação está afetando o comportamento dos pesquisadores aqui nas universidades brasileiras. É claro qe estimular a pesquisa é importante, mas parece que quem está ditando as regras (como a CAPES) se esqueceu que qualquer extremo nesta história não vai trazer bons resultados. O ideal seria achar algum tipo de meio termo entre estimular pesquisa e ensino, mas pelo visto a coisa só vai piorar... Ainda mais porque parece que a mesma pressão existe lá fora, com toda esta história do "Publish or Perish".

E o pior é que é muito fácil deixar esta situação carregar a gente. Eu mesmo já me peguei lendo um artigo, tendo alguma idéia interessante, e depois pensando, "hum, o autor não pensou em tal coisa; acho que dá pra publicar isso", antes mesmo de ter um genuíno interesse pela idéia! Dá até medo de perder toda a paixão que me levou a me interessar tanto pela ciência, e ficar neste jogo de publicar, não importa muito o que ou pra que...

Agora, sendo mais pragmático, o interessante é pensarmos em medidas que possam coibir pelo menos um pouco esta prática de distribuição de autorias. Duas propostas que eu vi na revista Nature podem ser um comecinho (nada que vá resolver o problema de uma vez, mas podem ajudar um pouquinho, o que já é um bom começo): uma é ceder um espaço para declarar, no artigo, a contribuição de cada autor (isto é opcional na Nature, mas parece que existem revistas que já exigem isto). Ou seja, deve estar explícito o que cada pessoa fez para merecer o nome no trabalho. É claro que quem está disposto a ser desonesto pode mentir aí também; mas mentiras muito grandes podem não colar. Também tenho a impressão de que existem pesquisadores e estudantes por aí que simplesmente não têm uma idéia clara de regras para autoria (ou seja, não agem necessariamente por malícia), então uma medida destas pode ajudar pelo menos nestes casos.
A outra idéia (que, até onde eu sei ainda é uma proposta que não está em prática; veja a proposta aqui ) é a de pesquisadores assinarem um termo se responsabilizando pelo conteúdo do artigo. A proposta original é evitar fraudes, mas acho que isto também pode deixar autores com o pé atrás antes de deixar o próprio nome aparecer em um artigo qualquer.

Bom, no mais, acho que só de existirem pessoas discutindo e criticando esta situação já serve para recuperar um pouquinho da esperança no mundo acadêmico (a minha, de vez em quando, fica bem pra baixo). Então parabéns pela iniciativa!

Abraços

Marquinhos