sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Infidelidade

A infidelidade masculina sempre foi tratada como "normal", com explicações até mesmo "biológicas", no sentido de que um macho infiel acaba deixando mais descendentes que os "bonzinhos". Homens que conhecem minimamente a teoria evolutiva algumas vezes chegam a argumentar a favor do comportamento promíscuo "à luz da evolução"...

Hoje estava passeando pela Internet, procurando alguma coisa interessante para postar aqui no Blog e abri o site da Science, onde encontrei um artigo ótimo sobre comportamento promíscuo que mostra que, pelo menos para uma espécie de passarinho (Erythrura gouldiae), a promiscuidade feminina tem uma base "biológica", chegando mesmo a aumentar o valor adaptativo da prole das fêmeas não tão boazinhas.

O artigo foi feito com base em experimentos e determinação de paternidade, e acredito que será exemplo de livros-texto no futuro, de tão bonito que é. Vou tentar simplificar:

Parece que estes passarinhos podem ter cabeça vermelha ou preta, e que a determinação desta cor está nos cromossomos sexuais (para quem não sabe, em aves as fêmeas têm dois cromossomos diferentes, Z e W, enquanto os machos têm dois cromossomos iguais, ZZ). É diferente, por exemplo, da espécie humana, onde as fêmeas são XX e os machos XY.

Bom, a cor da cabeça é dada por um gene no cromossomo Z, de modo que fêmeas ZRW têm cabeça vermelha, enquanto fêmeas ZrW têm cabeça preta. Os machos, por outro lado, podem ser ZRZR ou ZRZr e ter cabeça vermelha, ou ZrZr e ter cabeça preta.

Acontece que casais com cores de cabeça diferentes têm prole com viabilidade menor que os casais com cabeças de cores iguais. O problema é que uma fêmea de cabeça vermelha não sabe se um macho de cabeça vermelha é homozigoto ou heterozigoto para o gene R. O problema disso é que um macho heterozigoto também pode reduzir a viabilidade de sua ninhada.

O artigo sugere que os pares "monogâmicos" são formados tanto por indivíduos com as cabeças de cores iguais quanto diferentes. Vamos chamar de agora em diante os pares com as mesmas cores de "pares viáveis" e os pares com cores diferentes de "pares inviáveis", só para facilitar.

Agora vem o resultado mais interessante do artigo. Uma parte dos resultados mostrou que:

  1. quando fêmeas de pares viáveis traem seus companheiros com amantes também viáveis, a proporção de filhotes, frutos do amor proibido em relação ao total, é de 2/4 para as fêmeas de cabeça vermelha e 2/5 para as fêmeas de cabeça preta.
  2. quando fêmeas de pares inviáveis traem seus companheiros com amantes também inviáveis, a proporção de filhotes, frutos do amor proibido é bem menor: 1/5 para as fêmeas de cabeça vermelha e 1/4 para as fêmeas de cabeça preta.
  3. quando fêmeas de pares inviáveis traem seus companheiros com amantes viáveis, a proporção de filhotes do "outro" chega a 5/5 para as de cabeça vermelha e 3/4 para as de cabeça preta.
  4. finalmente quando fêmeas de pares viáveis traem seus companheiros com amantes inviáveis, nenhum dos 3 filhotes que produziram é do "outro"...
Estes resultados sugerem, no mínimo, que esse negócio de copular com mais de um macho aumenta a viabilidade dos ovos, além de aumentar a variabilidade genética da ninhada... O artigo fala também de competição espermática, já que o esperma de vários machos pode ficar estocado no corpo da fêmea por muito tempo.

Pensando bem, este tipo de resultado é muito interessante, e desmonta o argumento moralista de que "até as aves, que são irracionais, são fiéis"... Na verdade o argumento caiu por terra desde os primeiros trabalhos aliando metodologias moleculares com estudos comportamentais.

Será que este é o início de uma era onde as mulheres também terão argumentos "biológicos" suficientemente bons para um comportamento mais promíscuo? Tenho visto na televisão umas reportagens insinuando que os homens traem mais, mas as mulheres mentem melhor. Haverá um componente adaptativo para a traição das fêmeas de Homo sapiens? Acho que os homens vão ter que arrumar outro argumento para as próximas puladas de cerca, ou então vão ter que engolir o argumento biológico vindo na contramão...


sexta-feira, 13 de agosto de 2010

fundamentalismos II

Inspirada num post do blog do Nelson, gostaria de falar de outro tipo de fundamentalismo que ando vendo por aí: o fundamentalismo genético.

Discuti isso ainda hoje com os meus alunos na sala de aula. Estamos só no começo da disciplina de genética básica, e estávamos falando sobre dominância e recessividade. Uma maneira prática de entender recessividade é a seguinte: um gene (ou alelo) é dito "recessivo" quando se expressa no fenótipo apenas quando está em dose dupla, ou seja, quando são necessárias duas cópias e não uma só para que o gene surta efeitos visíveis ou sensíveis (estamos falando do bicho-gente, que é diplóide).

Bom, eu comentei com eles que existe uma empresa que se chama "23 and me", que presta o serviço de sequenciar o seu genoma haplóide (por isso 23, eles sequenciam apenas um de cada um dos seus cromossomos). Não sei direito se eles sequenciam tudo, ou fazem uma busca por "genes suspeitos" que você porta. O que interessa é que, depois de um tempo, te mandam uma lista com todos os "problemas genéticos" que você poderá ter durante a sua vida...

Refletimos sobre a possibilidade de ter sequenciados alelos recessivos que não seriam expressos de qualquer maneira, já que estão em dose única e só se expressariam em dose dupla. Será que quando a empresa vende o serviço ela informa sobre esta possibilidade? Ou será que quando detecta uma coisa assim, sequencia os dois alelos para saber qual o genótipo completo referente à doença antes de alarmar o cliente?

Outra coisa a ser pensada nas próximas aulas de genética: e todos os outros genes que poderiam interferir na expressão da doença? Será que já se sabe quais e quantos são? E o ambiente em que a pessoa se desenvolve, não conta???


Esta informação, em todo caso, seria útil no caso de casamento com outra pessoa que também tivesse tido seu genoma haplóide sequenciado e tivesse detectado o mesmo problema no mesmo gene... Neste caso você teria 25% de chance de ter um filho com o genótipo recessivo, e, dependendo do ambiente, o menino poderia ter a doença genética determinada pelo gene em questão...

O post do Nelson fala do editorial da Nature desta semana, onde Francis Collins (o responsável pelo consórcio público de sequenciamento do Genoma Humano), um geneticista muito conhecido e respeitado, disse ter começado a se preocupar com sua saúde por causa de um diagnóstico genético (por sequenciamento) que indica a probabilidade de ter diabetes tipo 2.

A história toda me lembrou um artigo da revista Genética na Escola que trata de uma atividade didática, a paresentação do filme (que ainda não vi): Questão de Sensibilidade (The Twilight of the Golds). Após a apresentação do filme, os estudantes são convidados a discutir sobre o que foi visto, à luz do que estão aprendendo em genética. No contexto do filme (por favor, no contexto do filme!), já se sabe que existe um gene que determina o comportamento homossexual. O personagem principal é um geneticista, cuja mulher está grávida. A trama se desenvolve na pressão familiar para que o geneticista faça uma análise geral do genoma do filho, em busca de possíveis problemas, de modo que estes problemas possam ser evitados com um ambiente mais apropriado. Resulta que o menino só tem mesmo predisposição para o homossexualismo e a família em questão é composta de pessoas preconceituosas... Dá o que falar uma aula dessas, né?

Voltando para o fundamentalismo, acredito que o "fundamentalismo genético" possa ser ainda mais nocivo que o fundamentalismo religioso. Um outro filme, este bem mais famoso, o GATACA, ataca um pouco melhor este tema... É um tanto exagerado, mas mostra uma sociedade totalmente estratificada, de acordo com habilidades genéticas, geradas por engenharia genética. Os geneticamente "melhores" seriam os merecedores dos melhores empregos, com os melhores salários. O interessante disso tudo, é que esta história é muito parecida com o "admirável mundo novo" de Aldous Huxley, onde as condições ambientais, nos "aquários" onde os embriões humanos eram literalmente cultivados, definiam quem ocuparia qual casta na sociedade. Os embriões que recebiam nutrição adequada, sem álcool ou drogas no aquário durante o desenvolvimento, seriam os cidadãos alfa, os merecedores dos melhores empregos com os melhores salários...

Fechando tudo (menos!), o que eu tenho a dizer é que o fundamentalismo é nocivo, e que precisa ser detectado, para que possamos nos defender disso. Não gostaria de ouvir notícias no Jornal Nacional, de que as pessoas estão sendo discriminadas para exercer uma profissão ou outra por causa de diagnóstico genético... No fundo é tudo a mesma coisa. Para os religiosos, você não tem credibilidade porque não acredita em deus. Para os fundamentalistas genéticos, você não tem credibilidade porque foi sequenciado, no seu genoma, o gene para uma doença qualquer, que poderia limitá-lo em algum momento de sua vida...

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

fundamentalismos...

Num livro de divulgação científica "o que nos faz humanos" de Matt Ridley, eu lembro de ter lido algo sobre a herança do fundamentalismo. Parece que gêmeos idênticos, mesmo que criados separados, têm uma correlação bem alta quanto ao fundamentalismo, de modo que se um deles é fundamentalista (pode ser religioso, político ou de qualquer outra natureza) o outro também será fundamentalista, do mesmo tipo ou de qualquer outro. Ou seja, o que tem grande probabilidade de ser herdado é a postura fundamentalista, e não o foco do fundamentalismo.

Um fundamentalista, até onde eu consigo compreender, é um sujeito que sabe a verdade e que não aceita opiniões contrárias, mesmo que sejam colocadas apenas como opiniões. Um fundamentalista sabe a verdade e esta verdade tem que ser amplamente aceita e aclamada, e coitado de quem tiver coragem de dizer que pensa diferente.

Estou falando disso porque acredito que isso seja muito importante na construção da relação professor-aluno, principalmente se você for professor de evolução. Explico: se você entra numa sala de aula para dar aulas de evolução e tem um estudante fundamentalista, pode ser que você tenha problemas.

O cerne da questão é que alguns segmentos de algumas religiões decretaram que o evolucionismo é ateu e que é o tipo de conhecimento nocivo para suas crianças e seus jovens. O estudante com esse tipo de postura já chega na sala de aula avesso ao aprendizado, já tive casos de estudantes que declararam que iriam "decorar" o que lhes fosse ensinado, que iriam inclusive sair-se muito bem na disciplina, mas sem "acreditar" em nenhuma palavra do que fosse dito.

É importante deixar claro que a evolução, ou qualquer outra teoria científica, não requer que o sujeito creia ou deixe de crer no que quer que seja. A questão é um pouco diferente. Você precisa abrir a sua mente para o fato de que talvez a interferência divina não seja tão grande quanto você imaginava, mas que ela ainda assim, exista (ou não, para o caso dos ateus).

Só pra exemplificar, na idade média a Terra era o centro do Universo, essa era uma verdade consumada, e tinha cunho religioso, já que Deus assim o decidiu. A descoberta de que a Terra não é o centro do universo abalou os alicerces da Igreja, que tentou negar o fato enquanto pôde (inclusive ameaçando queimar o teórico e efetivamente queimando livros e documentos). Não foi por isso, porém, que as pessoas deixaram de ter suas crenças num ser superior que criou o "céu e a Terra"...

Quando Darwin propôs a teoria da evolução, quem saiu do centro da criação foi o Homo sapiens, o que provocou outra fúria por parte das religiões. O homem passou a ser parte de um esquema maior, com parentes próximos vivos que não deixam a menor dúvida do parentesco.

Tirar o homem do centro da criação foi um golpe ainda maior nas religiões. Mas, ainda assim, é possível crer numa divindade criadora do homem. O que quero dizer é que é possível crer em qualquer coisa e mesmo assim conseguir aprender evolução de forma minimamente razoável.

Na minha opinião o grande feito de Darwin para a espécie humana foi retirar a "obrigação" de acreditar em um criador onipresente e onisciente, que criou a tudo e a todos e que tem o controle de todas as situações. O interessante é que você agora é livre para acreditar ou não. Tenho um aluno que afirma que a fé é uma experiência pessoal, e você acredita ou não no que quer que seja pelas experiências que teve em sua vida.

Acho que é isso que mais incomoda aos fundamentalistas: como somos todos livres para pensar como quisermos, sem a obrigação de aceitar verdades pré-concebidas por dogmas religiosos, mais gente passa a pensar de forma diferente, o que, para um fundamentalista é absolutamente insuportável.

Richard Dawkins trata desse assunto de uma forma um pouco diferente. Acredito que tenha apanhado (literalmente) tanto de fundamentalistas religiosos que acabou colocando todos os religiosos e suas respectivas religiões num mesmo balaio, numa espécie de fundamentalismo ateu contra religiões. Não sou tão pessimista. Às vezes até consigo admitir que a religião seja positiva para algumas pessoas. O que é mais importante: respeito as religiões e seus seguidores, tenho numerosos amigos que são religiosos e que também me respeitam na minha falta de religião.

Algumas pessoas, em sua nobre tentativa de converter uma "alma perdida" como a minha são sutis: me mandam "links" da internet, que tratam de evolução x religião sempre atacando a evolução. Outras gastam seu dinheiro me presenteando com livros e publicações dos mais diversos tipos que falam sobre o assunto. Já tive amigos próximos que me disseram para não ler determinados livros (parece coisa da idade média!), pois abalariam ainda mais minhas convicções religiosas (supondo, é claro, que eu tivesse alguma). Até aí, tudo bem. Basta não conversar mais sobre o assunto e as coisas se resolvem. O problema está nos realmente fundamentalistas, que podem chegar a ser agressivos, fazendo ameaças e provocando intrigas. Em casos mais graves, alguns partem inclusive para a agressão física.

Eu não entendia a postura do Dawkins, mas ela começa a fazer mais sentido. Não tem nada pior do que ser ostilisado por pensar de uma maneira ou de outra. Acho inclusive que a atitude dele ao escrever sobre isso em "Deus, um delírio", é muito corajosa, não ficaria surpresa em saber que ele sofreu um atentado a bomba...

Tudo isso é só um desabafo... Será que alguém que nasce fundamentalista não consegue, com a ajuda de seu intelecto (temos um cérebro ENORME), mudar de atitude em relação aos que pensam diferente? Ou será que isso faz parte da natureza humana? A questão seguinte é: seremos para sempre reféns da tal natureza humana ou podemos lutar contra os pontos negativos dela?

Deixo este "post" aqui no blog para o caso de se atacada por algum fundamentalista enfurecido que tenha a convicção de que eu tenha que deixar de estudar e falar de evolução.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

quem começou?

Aqui mesmo no blog, um estudante me questionou: o que será que começou primeiro, os professores ficaram sem vontade de dar aula ou os alunos ficaram sem vontade de estudar?

Difícil de dizer. Posso falar da minha experiência pessoal e do que tenho observado. Cada vez que entro na sala de aula com vontade mesmo de dar aula e encontro uma turma apática, que não está nem um pouco interessada no que tenho a dizer, morre mais um pedaço da professora idealista dentro de mim... Às vezes tenho a impressão de que neste ritmo ela vai definhar e acabar para sempre, e eu vou me transformar num desses professores que contam os dias pra se aposentar.

Vejo alguns dos meus colegas mais velhos, com mais tempo de casa, que são muito difamados pelos estudantes por não terem tolerância com os alunos, e me pergunto se eles, em algum lugar do passado, não eram professores idealistas, que preparavam ótimas aulas e que eram recebidos por turmas apáticas.

Do ponto de vista de um professor iniciante, os estudantes começaram, e que esta atitude não ajuda a ter bons professores...

Por outro lado, me coloco na posição dos alunos, que chegam para assistir aula e são recebidos por um professor cansado e calejado, que está abatido por não ter conseguido manter vivo o ideal de ensinar e que tudo que tem a dizer é que não gostaria de estar naquele ambiente.

Do ponto de vista de um estudante, acho que os professores começaram, e que esta atitude não ajuda a ter estudantes interessados...

Ok, e a história toda, onde começou? Não tenho a menor idéia... Desde sempre eu soube que algumas pessoas gostam de estudar, e o fazem com prazer, enquanto outras detestam a escola desde o princípio.

Será que de uns tempos pra cá temos mais estudantes que detestam a escola assistindo aulas, o que desmotiva os professores e acaba desmotivando os outros estudantes?

Proponho uma solução para o mundo ideal: como todo mundo precisa estudar (pelo menos até terminar o ensino médio - e esta é a minha opinião), seria legal se os estudantes fossem divididos em turmas de gente que gosta de estudar e turmas de gente que não gosta de estudar. O único critério é o estudante declarar no ato da matrícula: gosto ou não gosto de estudar. A idéia é dar um tratamento diferenciado, no sentido de tentar "converter" os que não gostam de estudar. Todos poderiam mudar de turma em qualquer tempo durante o semestre. Uma escola melhor seria aquela com maior aumento na turma dos que gostam de estudar durante o ano.

Na turma dos que não gostam de estudar, a vida seria mais fácil e mais divertida, de modo a garantir que o estudante saia da escola com o mínimo necessário para saber escrever, ter um mínimo de cultura geral e saber fazer contas elementares. Tudo isso é essencial para qualquer tipo de profissão.

Eu sugiro também que as profissões, hoje destinadas a pessoas que não estudaram, comecem a ser exercidas por pessoas que não gostavam de estudar na escola e estavam nestas turmas especiais. Estas profissões também teriam de ser melhor remuneradas do que são hoje, de modo que o sujeito, mesmo sem gostar de estudar, possa dar uma vida digna a suas famílias, sem recorrer à violência, uma saída comum àqueles que não estudaram e não se conformam com uma vida de privações.

Na turma dos que gostam de estudar, as coisas seriam diferentes. Sem a influência daqueles que não suportam os bancos da escola, as aulas renderiam mais, seria possível aprofundar os mais diversos assuntos. Além disso, poderiam ser feitas seções de palestras, com os mais diferentes profissionais, de engenheiros a cientistas, de modo que o estudante pudesse ter uma visão mais abrangente do mundo que terá aos pés mais tarde...

Nesse mundo ideal, as universidades seriam o passo natural na carreira de quem gosta de estudar. As licenciaturas seriam cursadas por pessoas que, além de gostar de estudar, acham que ensinar é muito importante.

Será que neste mundo, os profissionais seriam mais bem formados? Será que neste mundo não seria necessário conviver com estudantes universitários que não sabem sequer porque optaram por um curso ou por outro?

Fica a idéia... Será que daria certo?

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

dou aulas porque gosto, se não gostasse, ganharia dinheiro...

Quarta feira passada começou a minha primeira experiência pra valer com estudantes da licenciatura. Eu tinha feito uma pequena pressão aqui na universidade para esta turma ser exclusiva deles, mas não tive sucesso, então terei que dar estas aulas para uma turma mista (metade licenciandos da biologia e a outra metade estudantes dos mais variados cursos de biológicas e agrárias aqui da UFV - Agronomia, Engenharia Ambiental, Veterinária, Engenharia Florestal e Zootecnia - ou seja, "o samba do crioulo doido").

Estou muito preocupada com a formação destes professores (de professores na verdade). Um dos discursos mais frequentes aqui na universidade a respeito das cotas sociais é: "o governo não devia se preocupar com cotas, e sim com a melhora do ensino fundamental e médio, o que garantiria o acesso de todos à universidade pública".

Vamos por partes: Conversando com os estudantes da licenciatura, eles me contaram que até agora (estão no quarto período do curso) todos os professores que entraram em sala de aula disseram: "eu não gostaria de estar aqui, estou sendo obrigado a dar aulas à noite para vocês". Acredito que eles tenham exagerado, e que não tenham de fato ouvido isso de TODOS os professores. Por outro lado, na minha ingênua concepção de mundo, eles não deveriam ter ouvido isso nunca. Imagine o impacto se você está fazendo um curso noturno (que é um perrengue, convenhamos, ter que ficar todos os dias até as 22:10 assistindo aula!), entra na sala de aula, o professor mal se apresenta e diz logo: "hum, eu estou aqui contra a minha vontade". Será que dá vontade de assistir à aula de uma criatura dessas? Você confiaria a sua educação a alguém que não está com vontade de ensinar? Particularmente, acho que eu não teria a menor vontade de assistir às aulas dessa pessoa...

Bom, se o sujeito que disse que não precisamos de cotas e que o ensino fundamental tem que ser melhorado for o mesmo que entrou para dar aula na licenciatura sem estar com vontade (e pior, disse isso gratuitamente aos alunos), então esse sujeito ainda não percebeu que a formação dos professores, fundamental para melhor o nível dos níveis fundamental e médio, é de responsabilidade dele também.

É isso que eu quero dizer. Tá na hora de tomar para si algumas responsabilidades. É verdade que eu, por melhor que eu fosse, não conseguiria, sozinha, melhorar o nível do ensino médio ou fundamental. Acontece que não me sinto no direito de ficar de braços cruzados esperando que a solução venha de cima (do governo, ou talvez de alguma divindade...).

Acho ótimo que hajam propostas de valorização dos professores. Tenho certeza que é fundamental que os professores sejam melhor remunerados, o que aumentaria a concorrência para os cursos de licenciatura e consequentemente o nível dos licenciados. Parece um plano perfeito para melhorar o nível intelectual do país!!! Mas de que adianta ter estudantes em tese "melhores" que os que temos hoje se os professores destes licenciandos estão desestimulados e com pouca vontade de dar aula?

Na minha opinião, acho que nós que lecionamos na universidade temos um papel fundamental nesse esquema: comparando o nosso salário com o salário dos professores da rede estadual e municipal (pelo menos aqui em Minas), posso dizer, sem medo de errar, que ganho uma pequena fortuna (é claro que se eu comparar o nosso salário com o salário de um doutor numa multinacional, posso dizer que ganho uma miséria). Bom, se eu sou doutora e professora universitária, é porque optei por isso. Dou aula porque é isso que gosto de fazer! Eu também gostaria que todos os professores dessem aulas porque gostam disso, e que ganhassem o suficiente para ter uma vida digna, fazendo o que gostam.

Partindo do princípio que os doutores que estão na universidade não estão fazendo outra coisa mais lucrativa porque não querem, então eu tenho que concluir que todos dão aulas porque gostam e porque querem. Se isso for verdade, por que não compartilhar este gosto com os estudantes?

Mais do que isso, se somos professores universitários e gostamos de dar aulas, temos a obrigação de dar boas aulas, e temos a obrigação de mostrar a nossos alunos que dar aula é uma atividade prazerosa. Temos também que colocar na cabeça de uma vez por todas que as aulas que damos para os licenciandos são as mais importantes que podemos dar na vida. Explico: se dou aula de genética para um estudante do bacharelado que adora genética e que quer estudar isso pro resto da vida, minhas aulas farão pouca diferença (e a minha cara amarrada durante a aula também), porque este estudante já foi estimulado e certamente buscará outras formas de aprender o que eu não fui capaz de ensinar. Certamente este estudante vai muito além da minha aula, e, se por acaso eu disser alguma coisa muito errada, ele vai perceber e isso não fará a menor diferença pra ele.

Por outro lado, se dou aula de genética para um estudante de licenciatura (que terá que aprender de tudo um pouco dentro da biologia para ser um bom professor) chego de cara amarrada e falando besteira, este estudante primeiro vai aprender que dar aulas é um suplício e que é possível fazer de qualquer jeito... Outra consequência é que ele talvez passe a odiar genética, e que portanto não faça a menor questão de aprender genética direito. Se genética fosse uma discplina isolada, um pouco menos mal, mas como é que você vai ser professor de biologia, que tem que ter uma boa noção do geral, e principalmente de evolução, se você não tiver uma base genética bem sólida?

Foi só um desabafo... É que estou cansada de ouvir professor dizer que a pior desgraça que eles têm na vida são os próprios alunos... Se você é doutor e dá aulas numa universidade, certamente tem (ou deveria ter) capacidade para fazer diversas outras coisas, com certeza mais lucrativas... Proponho uma frase pra colocar na camiseta: "dou aula porque gosto, se não gostasse, ganharia dinheiro!". Aceito propostas para melhorar o slogan...