quarta-feira, 11 de agosto de 2010

fundamentalismos...

Num livro de divulgação científica "o que nos faz humanos" de Matt Ridley, eu lembro de ter lido algo sobre a herança do fundamentalismo. Parece que gêmeos idênticos, mesmo que criados separados, têm uma correlação bem alta quanto ao fundamentalismo, de modo que se um deles é fundamentalista (pode ser religioso, político ou de qualquer outra natureza) o outro também será fundamentalista, do mesmo tipo ou de qualquer outro. Ou seja, o que tem grande probabilidade de ser herdado é a postura fundamentalista, e não o foco do fundamentalismo.

Um fundamentalista, até onde eu consigo compreender, é um sujeito que sabe a verdade e que não aceita opiniões contrárias, mesmo que sejam colocadas apenas como opiniões. Um fundamentalista sabe a verdade e esta verdade tem que ser amplamente aceita e aclamada, e coitado de quem tiver coragem de dizer que pensa diferente.

Estou falando disso porque acredito que isso seja muito importante na construção da relação professor-aluno, principalmente se você for professor de evolução. Explico: se você entra numa sala de aula para dar aulas de evolução e tem um estudante fundamentalista, pode ser que você tenha problemas.

O cerne da questão é que alguns segmentos de algumas religiões decretaram que o evolucionismo é ateu e que é o tipo de conhecimento nocivo para suas crianças e seus jovens. O estudante com esse tipo de postura já chega na sala de aula avesso ao aprendizado, já tive casos de estudantes que declararam que iriam "decorar" o que lhes fosse ensinado, que iriam inclusive sair-se muito bem na disciplina, mas sem "acreditar" em nenhuma palavra do que fosse dito.

É importante deixar claro que a evolução, ou qualquer outra teoria científica, não requer que o sujeito creia ou deixe de crer no que quer que seja. A questão é um pouco diferente. Você precisa abrir a sua mente para o fato de que talvez a interferência divina não seja tão grande quanto você imaginava, mas que ela ainda assim, exista (ou não, para o caso dos ateus).

Só pra exemplificar, na idade média a Terra era o centro do Universo, essa era uma verdade consumada, e tinha cunho religioso, já que Deus assim o decidiu. A descoberta de que a Terra não é o centro do universo abalou os alicerces da Igreja, que tentou negar o fato enquanto pôde (inclusive ameaçando queimar o teórico e efetivamente queimando livros e documentos). Não foi por isso, porém, que as pessoas deixaram de ter suas crenças num ser superior que criou o "céu e a Terra"...

Quando Darwin propôs a teoria da evolução, quem saiu do centro da criação foi o Homo sapiens, o que provocou outra fúria por parte das religiões. O homem passou a ser parte de um esquema maior, com parentes próximos vivos que não deixam a menor dúvida do parentesco.

Tirar o homem do centro da criação foi um golpe ainda maior nas religiões. Mas, ainda assim, é possível crer numa divindade criadora do homem. O que quero dizer é que é possível crer em qualquer coisa e mesmo assim conseguir aprender evolução de forma minimamente razoável.

Na minha opinião o grande feito de Darwin para a espécie humana foi retirar a "obrigação" de acreditar em um criador onipresente e onisciente, que criou a tudo e a todos e que tem o controle de todas as situações. O interessante é que você agora é livre para acreditar ou não. Tenho um aluno que afirma que a fé é uma experiência pessoal, e você acredita ou não no que quer que seja pelas experiências que teve em sua vida.

Acho que é isso que mais incomoda aos fundamentalistas: como somos todos livres para pensar como quisermos, sem a obrigação de aceitar verdades pré-concebidas por dogmas religiosos, mais gente passa a pensar de forma diferente, o que, para um fundamentalista é absolutamente insuportável.

Richard Dawkins trata desse assunto de uma forma um pouco diferente. Acredito que tenha apanhado (literalmente) tanto de fundamentalistas religiosos que acabou colocando todos os religiosos e suas respectivas religiões num mesmo balaio, numa espécie de fundamentalismo ateu contra religiões. Não sou tão pessimista. Às vezes até consigo admitir que a religião seja positiva para algumas pessoas. O que é mais importante: respeito as religiões e seus seguidores, tenho numerosos amigos que são religiosos e que também me respeitam na minha falta de religião.

Algumas pessoas, em sua nobre tentativa de converter uma "alma perdida" como a minha são sutis: me mandam "links" da internet, que tratam de evolução x religião sempre atacando a evolução. Outras gastam seu dinheiro me presenteando com livros e publicações dos mais diversos tipos que falam sobre o assunto. Já tive amigos próximos que me disseram para não ler determinados livros (parece coisa da idade média!), pois abalariam ainda mais minhas convicções religiosas (supondo, é claro, que eu tivesse alguma). Até aí, tudo bem. Basta não conversar mais sobre o assunto e as coisas se resolvem. O problema está nos realmente fundamentalistas, que podem chegar a ser agressivos, fazendo ameaças e provocando intrigas. Em casos mais graves, alguns partem inclusive para a agressão física.

Eu não entendia a postura do Dawkins, mas ela começa a fazer mais sentido. Não tem nada pior do que ser ostilisado por pensar de uma maneira ou de outra. Acho inclusive que a atitude dele ao escrever sobre isso em "Deus, um delírio", é muito corajosa, não ficaria surpresa em saber que ele sofreu um atentado a bomba...

Tudo isso é só um desabafo... Será que alguém que nasce fundamentalista não consegue, com a ajuda de seu intelecto (temos um cérebro ENORME), mudar de atitude em relação aos que pensam diferente? Ou será que isso faz parte da natureza humana? A questão seguinte é: seremos para sempre reféns da tal natureza humana ou podemos lutar contra os pontos negativos dela?

Deixo este "post" aqui no blog para o caso de se atacada por algum fundamentalista enfurecido que tenha a convicção de que eu tenha que deixar de estudar e falar de evolução.

9 comentários:

Michele Gravina disse...

Sei bem como é isso, tive uma aluna de ensino médio a uns dois anos atrás que tenta até hoje me converter à religião que ela segue. Ela também já me deu alguns livros e folhetos sobre a suposta dicotomia religião x evolução. Lembro-me que ela fazia questão de nunca faltar às minhas aulas, só para rebater cada argumento que eu colocasse. Sinceramente, não sei a medida da herdabilidade do fundamentalismo, mas penso que não somos tão reféns. Digo isso porque percebo que existe uma relação entre grau de instrução x grau de fundamentalismo. Claro que o grupo de pessoas que conheço pode não ser uma amostra representativa, mas a impressão que tenho é que isso se aplica também às outras pessoas. Em todo caso, acho que nós, como educadoras, devemos sempre estimular que nossos alunos encarem as coisas com senso crítico e tenham a mente aberta para versões diferentes sobre tudo que aprendem. Acho que isso ajuda a formar pessoas mais flexíveis, pelo menos para ouvir e respeitar quem pensa diferente.

Karla Yotoko disse...

Eu pensava como você, que o fundamentalismo era inversamente proporcional ao grau de instrução... Lêdo engano...

Temos que aprender a diferenciar fundamentalismo de pura ignorância. Um fundamentalista "mesmo" se recusa a aprender coisas relacionadas ao que não concorda. Uma pessoa que simplesmente ignora outros pontos de vista, pode ser facilmente convencida de que há alternativas.

Felizmente acho que a maioria das pessoas, quando expostas a alternativas conseguem agir de maneira razoável e tirar suas próprias conclusões, a partir da síntese do conhecimento anterior com o novo. Aí entra o papel do professor.

Quanto aos fundamentalistas "de fato", só nos resta lamentar sua existência e nos proteger de sua fúria.

Foi muito difícil pra mim admitir isso, mas é importante ter em mente que pessoas assim existem, e que podem ser perigosas. Estou dizendo isso por experiência própria, e posso te garantir que as agressões psicológicas e as ameaças de agressões físicas não são nada fáceis de lidar.

Nelson disse...

Eu acho a estratégia do Dawkins meio antipática, porque a maior parte das pessoas não faz questão de ser coerente com todas as informações que possui sobre o mundo, e na verdade a briga dele não é ocm essas pessoas (ou é?).
Mas... eu acho sim que pra aqueles que querem ficar pensando sobre a compatibilidade entre religião e evolução, a Teoria Evolutiva representa sim um grande problema.
Nas ciências físicas tudo bem, pode-se argumentar que Deus criou leis gerais através das quais o Universo passou a evoluir segundo essas leis. Mas onde vocês coloca uma idéia como essa em uma teoria que vai te dizer que não existe NENHUM propósito na existência humana e que somos o fruto de processos materialistas somados à contingência histórica?
Quem quer "a verdade" sobre o mundo não vai gostar disso, né. Qualquer noção de Deus que seja compatível com essa realidade teria que ser revista. O Deus Judeu/Católico/Muçulmano (lembremos sempre que é o MESMO Deus) não serviria mais. Não tem como deixar um crente feliz...

Karla Yotoko disse...

Bahhh... :P Eu não iria tão longe...

Tem um artigo do Dobzansky (aliás entitulado "nada em biologia faz sentido senão à luz da evolução" em que ele se diz um evolucionista criacionista. Se bem me lembro o raciocínio era o seguinte: Deus criou a primeira forma de vida e os mecanismos evolutivos, e a partir daí a vida evoluiu e nós conseguimos pensar nisso...

Não estou dizendo que eu acredite nisso, mesmo porque não tenho esta capacidade (de acreditar no que quer que seja), mas que é uma saída intelectualmente confortável para os que crêem, não tenho dúvidas. Tenho boas experiências com estudantes que entraram literalmente em crise com suas convicções e que sossegaram ao ler o artigo.

O problema persiste mesmo nos fundamentalistas, que não conseguem aceitar nem mesmo revisões coerentes em seu conjunto de crenças... Se você não conseguir aceitar, por exemplo, que não está no centro da criação, aí não tem jeito mesmo...

Nelson disse...

É, eu conheço essa "saída" que o Dabzansky achou, mas não acho que ela seja uma solução real pro problema de quem acredita em alguma coisa. Claro, eu acho que a gente tem que distinguir entre duas situações. Na primeira, tem as pessoas (indivíduos) e como elas vão compatibilizar as coisas dentro de suas cabeças. Pra esse pessoal, uma estratégia como a do Dobzhansky está OK. Exemplo relacionado, conheço muita gente que é católica romana e acredita em reencarnação, e realmente não estão nem aí sobre o fato de que pela motilogia estrita do catolicismo romano essas duas coisas não têm nada a ver. Na cabeça delas fez todo o sentido do mundo e isso é suficiente.

Eu só acho que ainda resta um problema sério pra aqueles interessados em aspectos mais filosóficos e teológicos, que se resume à questão do "propósito", à questão da Teleologia na Biologia. Como compatibilizar a mitologia judaico-cristã-islâmica com um Deus que teria criado um universo onde a espécie humana surge por mera contingência histórica?
Não estou aqui dizendo que nenhuma religião é compatível com o que se conhece sobre Evolução hoje. Nesse ponto eu não iria tão longe :-P Acho que deve haver várias crenças perdidas pelo mundo que sejam compatíveis com as duas noções, só não acho que essas grandes religiões monoteístas sejam pelo caráter extremamente antripocêntrico que possuem no seu mito de criação. E óbvio que eu posso estar errado ;-)

Porque a Biologia, diferente da Física, não tem grandes "leis" universais. Tipo, na Física é muito mais natural essa noção de que "Deus criou as leis e o Universo passou a se desenvolver, etc.". Essa visão ainda é compatível com um PROPÓSITO para o Universo, para a existência, etc. A maldição que o Darwin trouxe à biologia (e totalmente incorporada à Teoria Evolutiva moderna) é a sugestão de um universo SEM propósito, e aí que tá o problema.

Mas voltando aos fundamentalistas, olha só... descobri que o Santo Agostinho lá por 300 e poucos (!!) já dizia que quando a gente descobrisse de outras formas que a Bíblia estava "errada" era um sinal de que aquela passagem deveria ser revista de uma maneira metafórica. Não é sensacional?? O cara me escreve isso há 1700 anos atrás e AINDA tem gente brigando por uma interpretação literal das coisas... fundamentalismo é foda mesmo pq é isso, né... Eles já sabem A verdade. Pq eles deveriam revê-la?

Talvez nesses casos a estratégia do "eu te ignoro" seja a melhor mesmo. Não adianta dar aula pra eles, pq eles n vão se convencer com NENHUMA evidência. E desde que eles não fiquem enchendo o saco durante a aula e n atrapalhem os outros, já temos um bom começo. Visão triste, eu sei, mas tem outra?

Karla Yotoko disse...

Logo que eu comecei a dar aulas já me deparei com alguém que fez a disciplina, passou com 90 e poucos (em 100) e dizia não "acreditar" em nenhuma palavra do que eu dizia na aula de evolução.

Nesta ocasião eu dei corda, e posso dizer até que fiquei "amiga" da figura. Ela se limitava a discutir as coisas, encontrava sites de "criacionistas científicos" e me mandava na tentativa de me converter...

No fim do semestre eu escutei: "gosto de você, mas desisti de salvar a tua alma...". A partir daí eu comecei a conviver com outros estudantes deste tipo. Enfiei na cabeça que o mundo é assim mesmo. Cada vez que um estudante chegava pra mim com um papo criacionismo x evolucionismo eu perguntava logo: sua crença vai até onde? Adão e Eva são duas figuras simbólicas ou a pura verdade?

Quando a resposta era "a pura verdade" eu mudava de assunto e perguntava se a figura, quando tinha uma infecção, tomava a dose completa de antibióticos recomendada pelo médico. Se a resposta fosse "sim", e sempre era (nunca entendi porque), eu deixava de me preocupar e dizia que o sujeito não precisava mudar nada em sua cabeça...

Infelizmente acho que é isso mesmo, não temos nada para fazer com esta gente. Inclusive, as tentativas de argumentar podem levar o sujeito a pensar que nós somos os fundamentalistas...

Nisso eu estou com o Dawkins, a religião pode ser nociva no aspecto "acesso ao conhecimento". Só acrescentaria que a religião faz isso com os fundamentalistas.

Minha orientadora tem uma tirada ótima pra isso: nosso cérebro é enorme, nele cabem muito bem os mecanismos evolutivos (que usamos pra trabalhar) e um certo misticismo (que serve para consolar em momentos difíceis, como a perda de uma pessoa querida, por exemplo).

Acho que quem tem esta sorte, de poder crer no sobrenatural, tem mais motivos é para ser feliz, e não se deixar abater por nada.

Pra mim é um pouco mais difícil. Aprendi, isso sim, a pegar mais leve com os fundamentalistas, porque não acredito que um deus (ou algum santo ou anjo, nos quais eu não acredito) vá me salvar do ataque furioso de um fundamentalista...

Pensa nisso, a sua integridade física pode estar em perigo, e isso é um assunto muito sério em se tratando da relação professor-aluno.

Karla Yotoko disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Liliana Maria Rosa disse...

Isso que vocês estão identificando como fundamentalismo, e que se refere à fixação que algumas pessoas demonstram em agarrar-se a quaisquer idéias ou práticas consideradas fundamentais a determinada crença, tem raiz na disposição ao fanatismo. E o fanatismo, segundo estudos de diferentes autores, é uma condição psicológica fruto de tendências paranóides e de histórico de vida. Assim, algumas pessoas podem sentir-se mais propensas a se perceberem portadoras de qualidades, saberes, ou bens únicos, exttremamente valorizados, ou de se sentirem melhores do que os outros, por isso mesmo acreditando-se perseguidas. Converter os outros a suas idéias, ou a comportamentos que julgam os corretos torna-se necessário a elas para se sentirem mais protegidas, menos ameaçadas. Como vocês muito bem assinalaram, essas pessoas podem se tornar perigosas, principalmente quando reunidas em grupos, e mais ainda se adquirem algum tipo de poder. E os exemplos históricos são muitos. Parece que vocês sabem bem que o jeito de nos protegermos é o asseguramento da liberdade de pensar e de expressão, ao mesmo tempo que a "eterna vigilância" no que diz respeito a nós mesmos, poder tolrar a incerteza e as dúvidas sem enlouquecer já é um caminho, não acham?

Karla Yotoko disse...

Tolerância é sem dúvida a palavra chave para estas situações. Manter-se lúcido, não entrar em discussões e argumentar apenas no que for estritamente necessário (no caso das aulas de evolução, por exemplo). Fora de sala de aula, com pessoas que não sejam seus alunos, é bom verificar se determinados assuntos são bem vindos ou não antes de tentar entrar neles. Em caso negativo, conversar sobre outras coisas é certamente a saída mais acertada...