domingo, 6 de agosto de 2017

A América Latina, a Escravidão e Cotas nas Universidades _ O que aprendi nos últimos 10 anos

Meu abandonado blog fez dez anos outro dia e eu nem me lembrei… Who cares? Pois é, nem eu! Mesmo assim, como me lembrei dele, comecei a ler os posts de 2007. Eu era recém contratada na UFV, estava super feliz porque finalmente tinha um salário decente e alguma estabilidade financeira. Estava feliz também por causa dos alunos, estava confusa por causa do novo sistema de cotas e relativamente satisfeita com os rumos que o Brasil estava tomando.

Eu não tinha opinião formada sobre cotas nas universidades, que cheguei a pensar que fossem uma espécie de racismo às avessas. Hoje me sinto muito idiota por ter pensado assim e muito mais capaz de entender porque as cotas são tão importantes.

Foi pura ignorância, ou melhor dito, fruto de não querer enxergar e enfrentar a realidade. Acho que ao ficar mais velha (10 anos mais velha), além de ler mais e conhecer mais gente, adquiri um outro olhar sobre o tempo (a categoria “ano" significa cada vez menos para a minha existência, coisa de gente velha). Ainda hoje, conversando com um amigo no FB, ele me falou de uma conta cabalística que ele fez (ou ouviu de alguém): 400/128 = 3,125. Oi? Não entendi nada. Aí ele me explicou: “nosso país tem 400 anos de tráfico de escravos e 128 de libertação dos escravos".

O número também me perturbou. Não o número cabalístico, mas os 128 anos. Contando em gerações, são apenas 5. Há cinco gerações os negros foram abandonados nas estradas do Brasil pra se virar. Sem terras, sem ajuda financeira, sem o que coerm, pra onde ir ou voltar. Antes disso eram escravos, tinham que se submeter aos seus senhores. Foram arrancados da África para trabalhar na América Latina, foram primeiramente os responsáveis pelas "minas de açúcar" que a região produzia, minando a fertilidade das nossas terras e sua própria dignidade. Nem seus sobrenomes puderam manter. Hoje os negros carregam os sobrenomes de seus senhores, não podem sequer rastrear seus antepassados como o fazem tão orgulhosamente os descendentes de italianos e alemães por aqui (curiosamente os descendentes de portugueses não estão muito interessados em sua origem, por que será?).

Esse número me pegou em plena leitura do Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. Estou convencida de que todo latino americano tem que ler este livro, pra entender decentemente sua história, que não é nada glamurosa apesar de ter tido momentos épicos de crescimento e desenvolvimento, que foram devidamente solapados pelas coroas que estavam no comando em cada momento. Comecei a entender porque estudar história é tão importante sempre, mas especialmente crítico no momento que estamos enfrentando no Brasil. Sempre pensei assim, mas só pensava e nunca me mexi para aprender história. Estive sempre envolvida com textos científicos da minha área e antes disso com ficção científica. É tudo muito legal, faz os neurônios funcionarem, mas história é fundamental para não fazer papel de palhaça!

Bom, voltando para os escravos e a América Latina. Fazendo um resumo bem chinfrim, condenável por qualquer leitor mais atendo e um verdadeiro sacrilégio para alguém que realmente estudou história, a América Latina tinha seus nativos: em realidade um povo que aportou aqui entre 14 e 10 mil anos atrás, provavelmente vindo da Ásia. Há quem diga que antes deles viveram nessas terras povos negróides, e que isso teria acontecido até cerca de 20 mil anos. Apesar de termos registros destas pessoas, não temos evidência de que tenham sobrevivido até a chegada dos asiáticos, mas isso é outra história. 

Estes povos que aqui estavam, que em seu conjunto foram chamados de índios (o que é uma estupidez relacionada ao fato de que os conquistadores acharam _ ou fingiram que acharam_ que tinham chegado às Índias), tinham cultura, costumes e religiões particulares, que foram solenemente ignorados pelos conquistadores. Estes povos foram sistematicamente exterminados até sobrarem bravos representantes que estão por aqui até hoje, para maldição dos grandes latifundiários (ou seriam senhores feudais?).

Bom, na América espanhola, os habitantes tinham construído impérios, dominavam construção de monumentos, diques, tinham plantações, tinham reis, sabiam matemática e astronomia. Eles conheciam o zero! Estes povos foram dizimados em batalhas e por doenças, tudo para que os espanhóis pudessem levar todo o ouro e prata que encontrassem (nos objetos sagrados ou nas minas, nas quais escravizaram os locais para que os metais preciosos fossem extraídos). O mais irônico desta parte da história foi que a Espanha nem enriqueceu com estas riquezas, que foram quase que inteiramente consumidas nas cruzadas que o rei CarlosV (do império austríaco) resolveu fazer pela Europa.

Falando em Europa, eles estavam saindo do feudalismo e embarcando no capitalismo. O ouro e a prata retirados da América Latina financiaram o início da revolução industrial na Europa. Como nada é eterno, o ouro acabou. Mas não tem problema, estas terras ainda tinham muito o que dar para a Europa, afinal, eles acharam o território, que portanto lhes pertencia, certo?

Enquanto para a Espanha foi fácil achar ouro e escravizar os moradores locais, os portugueses tiveram um pouco mais de dificuldade. É que os nativos do Brasil não estavam muito interessados em ouro e trabalhavam para subsistência (caça, pesca e uns poucos cultivos). No resto do tempo, eles faziam rituais, cantavam, educavam seus filhos, enfim, viviam… Isso lhes rendeu a alcunha de preguiçosos e os portugueses perceberam que era mais fácil exterminá-los do que tentar escravizá-los. Bom, aí começou a história de plantar cana por aqui. Açúcar era uma iguaria na Europa. Os ricos e famosos consumiam açúcar como sinal de ostentação, mais ou menos como trocar de carro ou de I-phone todo ano agora (você já parou para pensar que os ricos sempre ostentam o que é produzido por pobres e miseráveis em outra parte do mundo?).

E dá-lhe derrubar florestas para dar espaço às plantações e madeira para construir os engenhos e alimentar o fogo. Boa parte da Mata Atlântica nordestina foi literalmente queimada pelos engenhos de açúcar (madeira de lei para alimentar as caldeiras, simplesmente brilhante!). Mas não foi só isso. Eles precisavam de mão de obra para fazer o serviço. O que fizeram? Contrataram gente que estava sem trabalho na Europa e deram vida digna e condições de trabalho decentes? Claro que não. Era muito mais barato pegar um navio, ir até a África, capturar pessoas, colocá-las nos navios e transportá-las para o Novo Mundo. As condições de transporte eram as piores possíveis. Além de serem arrancados de casa, eram colocados em navios imundos para uma viagem sem volta para um lugar novo onde coisas bem piores os esperavam. Muitos morreram no caminho e apenas os mais fortes tiveram a sorte de sobreviver para serem tratados como animais por seus donos. Estes que aqui chegaram fizeram do Nordeste Brasileiro a região mais rica do planeta por alguns míseros anos. Como diz Galeano, não exatamente com estas palavras, “quanto mais cobiçado o recurso (no caso o açúcar), maior a desgraça que causou na América Latina”. 

Depois de algum tempo sendo arruinadas com a monocultura do açúcar, as terras litorâneas do Nordeste se exauriram. Foi quando descobriram o ouro nas Minas Gerais e os esforços da Coroa se deslocaram pra lá. Consequentemente, os escravos deveriam ser enviados para o porto do Rio de Janeiro, para depois irem para as minas, trabalhar em condições sub-humanas para retirar todo o ouro que pudessem para que Portugal pudesse crescer (ou pagar as dívidas com outros países, como por exemplo a Inglaterra - que estava em pleno desenvolvimento da revolução industrial, mas eu já falei disso…). A Inglaterra passou também a controlar o comércio de escravos para a América, que antes era controlado pela Holanda. Não sei bem como isso se deu, mas boa parte do ouro retirado do Brasil ia parar nas mãos dos ingleses, que além de vender os escravos ainda os vestia (até a roupa dos escravos era importada da Inglaterra pelos portugueses). 

Muita água ainda passou por debaixo das muitas pontes que os Negros levantaram no Brasil, mas o fato é que um dia a Inglaterra decidiu que a escravidão era imoral e que os Portugueses ("esses porcos imundos”) tinham que acabar com isso. Paralelamente tínhamos movimentos abolicionistas no Brasil e tudo acabou com a assinatura da nossa última Princesa. E todos foram felizes para sempre, certo? Errado. A escravidão acabou mas a sub-humanidade dos negros persistiu. Comece a contar os últimos 128 anos. Sem ter onde dormir ou o que comer, acabaram marginalizados. Coincidência ou não (não acredito em coincidências), começaram os estudos eugênicos na Europa. Raça superior, pessoas melhores que outras, medidas, estatística, genética… A superioridade era dada por medidas, como por exemplo, o tom de pele. Não demorou muito pra moda chegar no Brasil. Os negros já estavam à margem, vivendo mal, comendo mal, cheirando mal, muitas vezes tendo que recorrer a furtos para sobreviver. Os europeus, que também cheiravam mal mas eram lindos, legais, inteligentes e éticos, decidiram que negros eram inferiores pelo tom de pele. Era a desculpa que os ex-senhores de escravos precisavam para mantê-los à margem (bem como o resto da sociedade, branca, limpinha e pseudo-esclarecida). Hoje ainda escuto o discurso de que o negros são pobres porque não trabalham, porque não dão duro (sei lá o que isso significa), porque são preguiçosos… Será mesmo? Aí vem uma boçal dizer que “não tem certeza de que as cotas nas universidades são boas" - eu mesma, num post de de 2007. Tem que ser muito ignorante e ter tido uma vida muito boa mesmo para pensar que racismo não existia no Brasil antes das cotas. Isso é uma herança cultural, que temos que tomar consciência de que está errada antes tarde do que mais tarde.

Dez anos se passaram e eu vi a diversidade de cores aumentar nas salas de aula. Os alunos negros, como os demais alunos, são bastante diversos em termos de personalidade e rendimento escolar: alguns são tímidos, outros extrovertidos, alguns têm alto rendimento, outros baixo, a maioria está na média, exatamente a mesma média dos outros alunos. Tentei ver diferenças entre negros e brancos e não achei. Em alguns momentos quis provar que os negros eram melhores. Fracassei, não há mesmo diferença entre os alunos. São todos jovens começando a vida adulta que querem um lugar ao sol. Alguns deles se aproximaram de mim. Tive a oportunidade de conhecê-los melhor, entender sua origem, aprender milhares de coisas com eles. Ganhei uma grande admiração por pessoas que lutaram muito, muito mais que eu, pra entrar na universidade, apesar de muita gente dizer que as cotas facilitaram pra eles. Isso é mentira, as cotas não facilitaram, apenas tornaram possível o que para muitos deles era inimaginável. Para estudantes brancos de classe média, essa possibilidade sempre existiu, porque nasceram bem, comeram bem e estudaram bem. O que ninguém pensa é que todo este privilégio é fruto de uma história que contém trabalho duro e dedicação à acumulação de riquezas (disso todos se orgulham), além a exploração de escravos negros, num passado não muito distante (disso ninguém quer lembrar).

Indo um pouco pra Europa, que tive a oportunidade de conhecer recentemente: história preservada, monumentos espetaculares de mais de 1000 anos, tudo muito lindo! Gente esclarecida, que respeita as diferenças (pelo menos onde estou isso é bem visível), "muito diferente destes latino-americanos que vivem na barbárie". É fácil demais cair nesta armadilha se você ignorar a nossa história. Será que a Europa teria conseguido manter seus monumentos se não fossem as riquezas arrancadas da América Latina, manchadas de sangue dos índios e negros? Pode parecer que os monumentos se mantêm em pé por obra de deus, mas isso custa uma grana astronômica. Sem falar nos que foram reconstruídos por aqui. Será que eles teriam este grau de riqueza e civilização que têm hoje sem todo o ouro, prata, açúcar, café e outras coisas que tiraram de nós até bem recentemente?

Voltando pro Brasil e para a série infinita (ou seria parte de uma série periódica?) de retrocessos que estamos enfrentando com o governo que se infiltrou no Planalto, e de lá não sai, fico na dúvida se as cotas vão continuar existindo. Em 10 anos não dá pra mudar o país nem sua forma de pensar. Precisamos de mais tempo. Essa política de desconstrução de tudo o que avançamos está nos jogando para o abismo do passado e mantendo a América Latina onde sempre esteve: aos pés dos países mais desenvolvidos (aqueles que se desenvolveram às nossas custas).

Precisamos lutar, com unhas e dentes, para não perder tudo o que foi conquistado. Minha única esperança são os jovens. Se alguém pode reverter alguma coisa, são eles.


Agora chega porque o post está enorme e provavelmente ninguém vai ler. Vou publicar só para registrar e saber o que eu estava pensando agora daqui a 10 anos, mais velha, mais ranzinza e com sorte, um pouco menos ignorante.

3 comentários:

via gene disse...

Eu li! Gostei da sua escrita em formato e conteúdo, não concordo com tudo, claro, como sempre... Mas textos assim me chamam mais do q pitacos recortados em discussões intolerantes e pouco construtivas no facebook. Parabéns por não desistir do blog. O meu está bem mais abandonado... Beijão Ana Claudia Lessinger (identificada, como solicitado!)
PS- posso estar enganada, mas me parece que o próprio Gabriel Garcia Marques não se identifica mais com o conteúdo de "Veias abertas..." Chocante... Vou procurar a fonte, faz muito tempo q li sobre isso...

Fábio Pazzini disse...

Eu li! Beijos

Karla Yotoko disse...

Ana, eu ouvi mesmo falar que o Galeano disse que não se identifica mais com o conteúdo. É bom lembrar, no entanto, que ele morreu antes do golpe contra Dilma, talvez ele mesmo repensasse esta declaração porque as coisas continuam se encaixando. Como é a primeira vez que leio, ainda me identifico muito com o texto, mas entendo o drama dele: eu mesma não me identifico com os meus textos do passado, acho que é um fenômeno normal, afinal, a gente muda, às vezes pra melhor e às vezes pra pior...