quarta-feira, 7 de julho de 2010

Seleção (Discriminação) contra o Heterozigoto...

O Jornal da Ciência, publicação da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) publicou hoje o artigo que resolvi copiar e colar a seguir. Este artigo tem muito a ver com temas que são discutidos na sala de aula, principalmente quando falamos de seleção natural.

Ele tem algo mais, porque esbarra na discriminação genética, um novo tipo de preconceito que a sociedade vai ter que começar a encarar. Será necessário que os professores comecem a discutir este tipo de tema com seus estudantes na sala de aula também, a esperança é conseguir eliminar este tipo de preconceito antes que ele cresça na sociedade...


Eliminação de Diarra da Copa: ato de cuidado ou discriminação genética?,
artigo de Cristiano Guedes

"A discriminação genética é a expressão criada para descrever a opressão sofrida por pessoas no mundo do trabalho e no acesso a direitos fundamentais em virtude de características genéticas"

Cristiano Guedes é doutor em Ciências da Saúde e professor da Universidade de Brasília (UnB). Artigo enviado pelo autor ao "JC e-mail":

A seleção francesa estreou na copa da África do Sul sem o jogador Lassana Diarra. O atleta foi eliminado do mundial devido a problemas de saúde que levaram à descoberta da doença genética, a anemia falciforme. Durante os treinos preparatórios nos Alpes Franceses, região com elevadas altitudes, Diarra teria sofrido manifestações clínicas comuns a pessoas com essa doença. De uma só vez, ele ganhou o diagnóstico, a eliminação da copa e a necessidade de um período de descanso para restabelecimento de sua saúde. A eliminação de Diarra da Copa mostra um pouco da vida de pessoas com anemia falciforme pelo mundo.

Descoberta em 1910, esse tipo de anemia afeta o funcionamento das hemácias. Uma das funções das hemácias é o transporte de oxigênio. As pessoas com anemia falciforme possuem hemácias suscetíveis a alterações de formato, o que podem prejudicar o funcionamento do organismo.

Diarra teve problemas intestinais, segundo informações divulgadas pela equipe técnica da seleção francesa. A anemia falciforme também pode causar outros transtornos. A variabilidade clínica é uma das características da doença. Algumas pessoas podem apresentar vários sintomas que exigem tratamentos complexos, de transfusões sanguíneas a cirurgias. Porém, existem casos em que as consequências são raras e por essa razão o diagnóstico pode jamais ser feito ou ocorrer tardiamente. Esse parece ser o caso de Diarra.

Desde 2001, as maternidades brasileiras usam o teste do pezinho para diagnosticar a anemia falciforme. O exame precoce é importante porque as crianças com anemia falciforme são mais vulneráveis a doenças, necessitam de acompanhamento e tratamento específicos, como o acesso a medicamentos e vacinas adicionais não disponibilizadas a população em geral.

A cura para a anemia falciforme ainda não existe, mas o acompanhamento precoce é capaz de reduzir ou impedir suas manifestações e, consequentemente, elevar a expectativa de vida. Tanto o diagnóstico quanto o tratamento precoces apresentam baixos custos se comparados aos gastos para tratar as manifestações clínicas.

Apesar disso, nem todos os países possuem um sistema gratuito com acesso universal e enxergam a doença como uma prioridade na agenda de saúde pública, como o Brasil. Os serviços de diagnóstico e tratamento são escassos ou não existem, por exemplo, no continente africano, onde Diarra nasceu e existe a maior parcela mundial de pessoas vivendo com anemia falciforme.

A anemia falciforme é mais frequente entre pessoas negras e pode ter surgido no continente africano, de onde teria se disseminado mundialmente por meio do tráfico de escravos e se tornado uma questão de saúde pública de interesse comum.

No campo científico, os avanços na área do genoma humano sinalizam para novas possibilidades de tratamento e até mesmo a possibilidade de cura em longo prazo. Na esfera política, as medidas envolvendo a anemia falciforme também amadureceram.

Na década de 1970, países como os Estados Unidos criaram programas populacionais para testar e identificar precocemente pessoas com anemia falciforme. Os programas de testes não asseguravam tratamento e nem preservavam o sigilo em torno da identidade de quem era identificado. Consequentemente, as pessoas identificadas pelo governo estadunidense sofriam discriminação no mercado de trabalho, nos planos de saúde e seguros de vida.

O movimento negro de lá tornou-se um questionador dos programas de testagem em massa para anemia falciforme e passou a exigir a criação de protocolos de atendimento pautada pela observância de direitos humanos.

O episódio envolvendo o jogador Diarra pode ser considerado um convite à reflexão. É preciso analisar em que medida a humanidade conseguiu avançar na compreensão da doença e reconhecimento dos direitos das pessoas com anemia falciforme. Diarra personifica uma série de questões aos cientistas, profissionais de saúde, técnicos esportivos e elaboradores de políticas públicas: quais seriam os reais limites de uma pessoa vivendo com a anemia falciforme? Como explicar a trajetória profissional de um dos melhores jogadores de futebol do mundo apesar da anemia falciforme? Todas as pessoas com anemia falciforme devem ser privadas da prática de atividades esportivas profissionais e participação em campeonatos internacionais? A quem interessa o resultado de diagnóstico da anemia falciforme e como deve ser divulgado de modo a preservar a identidade das pessoas com a doença e ao mesmo tempo assegurar tratamento e acompanhamento necessário? Quais são os fatos e os mitos sobre a doença e como lidar com eles?

Essas perguntas precisam ser consideradas, sob pena de se cometerem injustiças. A eliminação de Diarra da seleção francesa pode ser descrita tanto como um ato de cuidado em saúde como também um ato de discriminação genética.

A discriminação genética é a expressão criada para descrever a opressão sofrida por pessoas no mundo do trabalho e no acesso a direitos fundamentais em virtude de características genéticas que possuem. Alguns têm sido discriminados no mundo do trabalho, onde são impedidos de ingressar como trabalhadores ou despedidos quando se descobre uma característica e/ou doença genética.

Algumas das doenças e traços genéticos não trazem nenhuma implicação imediata para as atividades laborais. Outras pessoas submetidas a testes são explorados por empresas de seguro de vida ou planos de saúde que enxergam no dado genético uma razão para elevar os preços cobrados ou mesmo impedir o ingresso.

Para se combater o fenômeno da discriminação genética, vários países tem investido na criação de leis com o objetivo específico de disciplinar o uso da informação genética e preservar os direitos de pessoas submetidas a testes. No Brasil, ainda são poucos os relatos sobre o fenômeno da discriminação genética e, no Congresso Nacional, existe um projeto de lei que há anos é debatido entre os parlamentares.

O episódio envolvendo a eliminação do jogador Diarra ainda não acabou. Devemos acompanhar qual será a atitude do Real Madrid em relação ao destacado jogador de meio-campo. Independentemente das decisões do clube espanhol, uma lição pode ser aprendida: é preciso cuidado com as profecias genéticas. Diarra e sua trajetória de sucesso no futebol mundial revelam as possibilidades e as potencialidades de uma vida com (ou apesar da) anemia falciforme".

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