sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Ciência no Brasil e a fábrica de doidos...

Isso é um desabafo! Trabalho o filogenias, meus dados são sequências de DNA, que consigo em bancos públicos de dados internacionais (a parte fácil) ou tenho que produzir no laboratório (a parte trabalhosa, cara e demorada).

Até hoje, o serviço consiste basicamente em coletar os espécimes no campo, tarefa que requer autorização do ICMBio e alguns relatórios. Uma vez no laboratório, o organismo deve ter o DNA extraído e é neessário fazer múltiplas cópias do locus de interesse, em geral um gene mitocondrial ou uma sequência não codificadora. Isso seria simples e rápido, não fosse o fato de que é necessário desenhar primers (sondas que permitem estudar apenas a região desejada do DNA).  Isso também seria simples se eles sempre funcionassem. O problema é que nem sempre funcionam, e, como trabalho no Brasil e os primers não são produzidos por aqui, o tempo de espera pode variar de 2 a infinitos meses, caso a alfândega resolva que não posso mais importar esse tipo de coisa. Já me aconteceu de esperar cinco meses por um par de primers, inadmissível (sim, eles mudam de ideia de tempos em tempos, ainda não consegui entender exatamente como funciona). Comparando com colegas que estão nos EUA, a coisa fica mais ridícula. Eles conseguem desenhar um par de primers e testá-lo no mesmo DIA!!!! Assim, brigam no máximo uma semana com uma região difícil de amplificar... Sem comentários!

Outra coisa que preciso comentar é que os equipamentos e reagentes necessários para a extração do DNA e fazer as tais múltiplas cópias também são importados. Com isso, se ganhei 20.000 do governo federal ou estadual para pesquisa, na verdade ganhei só a metade disso, pois a outra é devolvida ao governo em forma de impostos. Tudo isso a despeito de ser funcionária pública de uma instituição federal (sou professora universitária).

Saindo de meu pequeno parêntesis. Uma vez conseguidas as múltiplas cópias, é preciso sequenciar o tal fragmento de DNA. Isso tem vários usos, que vão da identificação molecular de espécies ao estudo da variabilidade genética dentro e entre populações. Para sequenciar posso utilizar laboratórios que fazem esse tipo de serviço, uma vez que a demanda de meu laboratório é pequena e eu não tenho recursos para manter um sequenciador. No Brasil, alguns laboratórios oferecem o serviço, mas o preço é muito alto e sempre que algo sai errado tenho que arcar com todo o prejuízo. O problema é que a demanda é muito maior que a oferta, o que deixa o serviço muito lento. Há alguns anos tenho utilizado os serviços de um laboratório coreano: a qualidade é excelente, além de eles refazerem sem custos qualquer sequência que tenha ficado ruim, sem discussão.

O problema aqui é a burocracia de novo. Sempre que um aluno meu precisa mandar amostras para serem sequenciadas, precisamos preencher um cadastro, explicar porque cada amostra tem que ser enviada, anexar o projeto e esperar pelo carimbo e assinatura de um outro funcionário que tem como objetivo garantir que eu não estou fazendo nada de errado. Eu não sei qual a formação dele, mas nunca li nenhum artigo dele na área, motivo pelo qual suponho que ele não seja doutor em genética, biologia molecular ou evolução... Para pagar pelo serviço, conto com a fundação da universidade, que a cada pagamento pede que eu justifique (reiteradamente) porque utilizei essa empresa e não qualquer outra. Você pode argumentar: "é só copiar e colar professora", mas se é só isso mesmo, porque tenho que fazer???

Apesar de reclamar (e achar um absurdo) tenho conseguido viver com esse nível de burocracia. Estou de férias, e o grande objetivo era descansar um pouco da correria (além de burocrata e aspirante a pesquisadora, sou professora). O problema é que não consigo colocar uma mensagem de "estou de férias e não me procure essa semana" e acabo lendo os e-mails que me mandam. Pois é. Recebi um e-mail de um colega pedindo para os destinatários colaborarem com um projeto de lei que vai ser votado segunda-feira (tipo, daqui a três dias) na câmara dos deputados, o PL7735/2014.

Estava chovendo e eu estou na praia com internet... Sem nada pra fazer, resolvi ler o PL, que "dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético; sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado; sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade; e dá outras providências". Já achei bem estranho um único PL dispor sobre tanta coisa... A expressão Patrimônio Genético me chamou a atenção, então resolvi ler o tal PL...

No artigo 2o o PL conceitua Patrimônio Genético como qualquer informação de origem genética... Opa, isso me diz respeito, trabalho com sequências de DNA... Resta agora resta saber o que fico proibida de fazer por essa nova lei.

Continuei lendo, já bastante preocupada quando cheguei no capítulo IV, cujo parágrafo único declara ser "vedado o acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado por pessoa natural estrangeira." Oi? Pessoa natural estrangeira? Qualquer um que não tenha nascido no Brasil??? Não sei se quem fez a lei sabe, mas existe um acordo entre todas as revistas científicas do mundo de obrigatoriedade da disponibilizar toda e qualquer sequência utilizada para obter os resultados de um artigo científico em um banco PÚBLICO de dados. Isso é muito interessante, como eu disse no começo desse post enorme, uma das minhas fontes é um desses bancos, onde sequências dos mais diversos organismos, coletados por todo o planeta estão disponíveis... Se a lei for aprovada como está, isso torna ilegais todos os projetos em andamento no meu laboratório, uma vez que o Patrimônio Genético a ser produzido pelos meus alunos deve ser publicado e acessado por bilhões de pessoas, a maioria "natural estrangeira"...

Bom, consideremos que o artigo 2o seja reformulado e o que eu faço não se torne ilegal. O Art. 3o dispõe que: "O acesso ao patrimônio genético existente no País ou ao conhecimento tradicional associado para fins de pesquisa ou desenvolvimento tecnológico e a exploração econômica de produto ou processo oriundo desse acesso somente serão realizados mediante cadastro, autorização ou notificação, e serão submetidos a fiscalização, restrições e repartição de benefícios nos termos e nas condições estabelecidos nesta Lei e no seu regulamento."

Não consegui entender... Para trabalhar, a partir de agora, vou precisar preencher cadastro, pedir autorização e/ou notificar a algum órgão? Isso quando? Antes de mandar o projeto, depois que ele for aprovado, antes de coletar ou antes de publicar? Fiquei muito confusa... Um trabalho científico vai precisar do aval de um burocrata? Esse burocrata tem doutorado na minha área? Como exatamente vai julgar o trabalho? Estou mais acostumada a ter projetos e trabalhos julgados por meus pares, que não têm recusado recursos ou impedido a publicação.


Ainda não acabou... Se você chegou até aqui, tem mai um item a ser considerado:

Art. 12. Deverão ser cadastradas as seguintes atividades:
I - acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado dentro do País realizado por pessoa natural ou jurídica nacional, pública ou privada;
II - acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado por pessoa jurídica sediada no exterior associada a instituição nacional;
III - acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado realizado no exterior por pessoa natural ou jurídica nacional, pública ou privada;
IV - remessa de amostra de patrimônio genético para o exterior com a finalidade de acesso, nas hipóteses dos incisos II e III do caput; e
V - envio de amostra que contenha patrimônio genético por pessoa jurídica nacional, pública ou privada, para prestação de serviços no exterior como parte de pesquisa ou desenvolvimento tecnológico.


Repare que o item V do Art. 12 acrescenta mais um item à burocracia insana do meu trabalho...

Bom, isso tudo foi para pedir o apoio de colegas e pessoas que trabalham com esse tipo de material. Vamos sugerir que a lei não trate de tanta coisas de uma só vez. Eu consigo entender porque proteger o conhecimento tradicional, que deve ser preservado a todo custo para que empresas multinacionais não ganhem quantidades indecente de dinheiro às "nossas" custas. Isso é um ponto. Outra coisa, muito diferente, é travar ainda mais a atividade dos cientistas desse país, que já sofrem tanto com burocracias dos mais diversos tipos.

Se a intenção é proteger nosso patrimônio genético de cientistas estrangeiros que aparecem por aqui, coletam o que bem querem e utilizam os organismos em seus trabalho, eu acho que a política tinha que ser no sentido de nos tornar mais eficientes. Sim, temos cérebros suficientes no Brasil para que possamos competir em pé de igualdade com os estrangeiros, ainda mais em se tratando de organismos brasileiros que estão no quintal de casa. Como eu disse no começo, nossa pesquisa é cara (carga de impostos), lenta e emperrada, por causa da burocracia. Se o dinheiro pudesse ser melhor empregado e o tempo necessário para conseguir equipamentos, insumos e produzir dados fosse mais curto, produziríamos mais e com mais qualidade.

Se você conhece alguém na minha situação, por favor, repasse esse post. Vamos todos entrar no site da câmara e pedir que essa votação seja adiada e que esses e outros tópicos possam ser discutidos pela sociedade e pela academia. Obrigada pela paciência!

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Entre relíquias sagradas e ciência... René Descartes

Passei só pra recomendar o último livro que li: "Os Ossos de Descartes", de Russel Shorto. Nunca li nada desse autor, nem tinha ouvido falar. Foi tudo um "acidente" feliz. Fui à livraria, procurar algum livro de divulgação científica na minha área... Não achei nada e olhei pro lado, na parte de filosofia da ciência (que vai ser meu novo nicho de busca de livros) e or acaso o título me chamou a atenção...

Sem esperar muito do livro, me surpreendi... O relato começa com a morte de Descartes, alguém que achava que iria driblar a morte por uns 500 anos (viveu só 52, vencido pelo frio da Suécia). Apesar de ser o pai do materialismo e ter criado as bases do Iluminismo (o movimento que, muito tempo depois de sua morte, iniciou o racionalismo na humanidade), Descartes  teve nada menos que três funerais (católicos) em épocas e contextos diferentes. Teve parte de seu esqueleto roubado (o crânio!), mantido como relíquia, vendido em um leilão barato e venerado, por cientistas e religiosos.

O livro conta a história dos ossos de Descartes, dos grandes cientistas que tiveram seu suposto crânio em mãos e das "certezas científicas" que basearam a veracidade do crânio enquanto pertencente ao grande mestre. É muito interessante ver que, como quase sempre, os pesquisadores partem de uma certeza (de que o crânio era dele e não de outro europeu qualquer) e como isso enviesa o resultado final. Ao mesmo tempo que conta uma história interessante, o autor faz pensar sobre o método científico, as crenças dos pesquisadores, o funcionamento do cérebro e em como tudo isso é indissociável.